Os textos publicados neste blog são frutos de constatações banais que me surgem no dia-a-dia; insights acerca de fenômenos quotidianos, mas que repercutem em várias escalas e assumem uma dimensão mais complexa do que se imagina. A ideia aqui é compartilhá-las, desconstruí-las para um estudo crítico e moldar novas concepções pessoais. Afinal, é assim que se desenrola a dialética vida contemporânea.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Lugar: o espaço enquanto ponto de fuga à oficiosa realidade


Há algumas semanas estive em um curso oferecido pelo Governo do Estado cuja finalidade era a de incitar a sinergia do servidor público em suas atividades laborais, a partir do autoconhecimento e de um aprimoramento nas relações interpessoais no ambiente de trabalho. A oficina foi ministrada por uma excelente psicóloga, o que nos colocava - os servidores participantes - como espécie de “pacientes” (desconheço o termo correto). Enfim, o que realmente interessa é que me foram surgindo ideias e questionamentos enquanto o curso decorria.
Sim, eu estava lá como espectador-"pesquisador", atento para as reações dos colegas funcionários e para o domínio teórico-prático da facilitadora em questão, sem, contudo, deixar de participar das atividades desenvolvidas.
Em uma das atividades os participantes expunham suas “técnicas” usadas para descarregar o estresse acumulado no dia-a-dia. Um dentre eles me chamou a atenção, ao afirmar se dirigir com certa frequência a Praça do Forte, parar em determinado ponto da praça, levantar os braços e gritar, gritar bem alto, a ponto de parecer a outrem um louco! - como ele mesmo colocou.

Logo associei o fato a uma forma de espacialização que na Geografia é conhecida como lugar - relação com determinado espaço que pode ser de afeição, bem-estar, de boas sensações, ou de aversão, desconforto, de sensações desagradáveis - tudo a partir da experiência sensorial e da percepção do espaço -; configura-se como um espaço de experiências pessoais, receptáculo de lembranças. Para ilustrar bem, sempre que ouço Nando Reis, especialmente o álbum “Drês” (2009), eu recordo da área do Parque do Forte que está de frente para o rio Amazonas (imagino que constitua um [bom] lugar para boa parte da população macapaense!).
O coração é uma flor que brota num chão rochoso
(...) Você ama esta cidade / Ainda que isso não soe verdadeiro
Você esteve em todos os lugares / E todos os lugares estiveram em você
(Beautiful Day, letra de Bono, música de U2, 2000)
A questão é que ainda não me havia passado pela cabeça usar os lugares como pontos de fuga à realidade da cinza e movimentada urbe - este espaço de fluxos constantes e rápidos, de compromissos desgastantes e ofícios que tanto nos consomem de forma repetitiva. Não, não sou contrário à vida urbana, que fique claro, e nem teria o porquê. Por outro lado, em meio a este cenário em tons acinzentados, têm-se essas ilhas, manchas de retirada, espécie de saídas de emergência, marcando um contraste em relação às repetitivas atividades oficiosas que tanto caracterizam a vida no meio urbano.
Trata-se de espaços de “perda de tempo”. Por isso são tão postos em papéis secundários; por isso passamos pouquíssimo tempo neles. A vida de trabalho nos é exigida para então nos provermos do “luxo” do lazer. Estamos quase sempre assimilando informações, mas em meio à natureza podemos tanto não fazer nada quanto ter acesso às informações de forma descompromissada e, portanto livre, de forma prazerosa, portanto. Não quero dizer que na mancha urbana não se pode apropriar-se do espaço nesse sentido, o que me faria negligenciar teatros, cinemas, esquinas, bares, etc., mas em qual outro lugar - como uma praça ou uma praia - podemos dispor de uma vasta extensão que nos permita certo isolamento, o contato com o natural e, em vista disso um distanciamento do espaço no qual praticamos desgastadamente nossos fazeres diários?!
Rendendo-se à (inevitável?) condição de peça de manutenção do trágico status quo, o que nos resta é mudar a concepção de que trabalho não prazeroso é preeminente frente a qualquer forma de lazer, ao mesmo tempo em que isso nos condena a uma condição social, a uma condição de vida que pode tornar-se prejudicial à subsistência humana - é necessário fazer um balanço entre os pesos postos de forma sadia. Sim, é complexo pra caramba! Eis então a dura tarefa de avaliar até que ponto vale a pena o quanto temporalmente devemos/podemos recorrer aos lugares enquanto pontos de fuga, enquanto espaços de liberdade e de “perda de tempo”, fazendo destes, receptáculos de experiências sensoriais e pessoais, de lembranças, estas acionadas por um agradável odor qualquer ou ainda por uma boa música do Nando Reis!
Mas triste é quem diz que para um problema / só existe a solução da matemática
O que me faz feliz são coisas pequenas / Um lindo arco-íris riscando o fim de tarde
(Livre como um deus, letra de Nando Reis, música de Nando Reis e Os Infernais, 2009)

Tomando outro foco...
Fico me questionando até que ponto um curso de sinergia pode ter real eficácia, considerando as condições de trabalho de um órgão público executivo (o “primo pobre” do legislativo e judiciário). Quer dizer, de que adianta o servidor ser instigado a almejar tanto autoconhecimento e aprimorar suas relações com os colegas de trabalho, desenvolvendo a utópica “simpatia geral”, sentir-se bem após uma oficina como esta (a qual pude perceber que surtiu bons resultados nos servidores participantes), se ao chegar ao ambiente de trabalho - composto de variados tons de cinza - cumprindo inflexíveis cargas horárias, desvios de função, baixas remunerações, plantões não remunerados, não disponibilidade de instrumentos que viabilizem as tarefas, etc., etc., et caetera, o indivíduo se depara com a volta à desanimadora rotina!? Isso me soa uma sinergia um tanto quanto efêmera e um compromisso meramente oficial por parte do governo!
Não vejo que o trabalho passe pela necessidade de cumprir rigorosamente uma carga horária (quando não se é imprescindível cumpri-la, como no atendimento direto ao público), sendo que o prazo por si só pode estipular o trabalho. Assim como o ambiente acinzentado, na sutil variação de cores neutras e dispondo de objetos tão característicos desse lugar, incorre na “maquinização” do servidor - este que tem uma energia em um tempo contado para gastar, geralmente não expondo seus sentimentos (neutralidade), um rol determinado de práticas que podem ser exercidas aí, vestuário propício para tal (uniformes explícitos ou subentendidos), assim como uma aparência física dita “correta”... -. Algumas empresas já usam as mais variadas estratégias de incentivo ao trabalho “feliz”, dentre elas a flexibilização do horário de trabalho (a partir de determinação de prazos) e a remodelagem do espaço físico no qual se desempenham as atividades (quem sabe umas cadeiras estofadas ou ainda um sofá, boa acústica, iluminação natural, elementos/objetos naturais, etc.). Faz-se necessário repensar todos esses aspectos concernentes ao trabalho e, sobretudo, ao meio em que se realiza o mesmo. Afinal, o ambiente não determina o comportamento humano, mas pode influenciá-lo.

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Nota: a conceituação de lugar e cidade apresentados no texto constitui uma visão pessoal, desprovida de um rigor científico no que tange a elaboração de ambos os conceitos expressos pela linguagem científica própria da Geografia. Para tal sugiro, dentre outros geógrafos, o chinês Yi-Fu Tuan e o brasileiro Milton Santos; lembrando que dentro da própria ciência geográfica, o conceito tem diferentes acepções, de acordo com as correntes que as definem.

5 boas canções psicodélicas de variadas origens
Estrangeira e estadunidense: 1 - Rock Lobster (The B-52’s)
Estrangeira e estadunidense: 2 - Brothersport (Animal Collective)
Estrangeira e islandesa: 3 - Innocence (Björk)
Nacional e paulista: 4 - Dois Mil e Um (Os Mutantes)
Regional e amapaense: 5 - Soldado Colorido (Mini Box Lunar)

8 comentários:

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  2. Alfaia, não sei nem o que dizer diante de tuas proposições,são fantásticas, escreves com uma maestria de um grande pesquisador social, com uma clareza de ideias invejável e creia !! não é ironia, estou sendo absolutamente sincera no comentário.Estou estudando alguns artigos para o mestrado e sua abordagem acima me fez fazer novas reflexões sobre o que eu estou estudando visualizando a cidade como lugar de pertencimento a significância espacial,social cultural e economica para o sujeito social.O lugar que construimos familia, ganhamos dinheiro.. .etc.Vou te passar esse artigo de Ana Molina,por e-mail, acho que vais gostar.Outro ponto interessante foi a análise do trabalho X trabalhador,tua perspectiva é perfeita.Outro dia eu li um artigo de como o Estado se apropria da nomenclatura "servidor"?uma designação questionável para trabalhadores do sistema capitalista que nos remete uma diferenciação no mundo trabalhista moderno mas o que nos diferem? legislação? ou um modelo de trabalhador assalariado? só sei que servimos o Estado e como tal temos que nos submeter as suas condições de trabalho, o mais interessante é que ser um servidor público é sonho de grande parte da população (inclusive eu), todos querem fazer parte dessa "servidão", pois garante o minimo de sobrevência e dependendo do nível hierarquico uma vida confortável o qual desejamos para manter uma linha de conforto que nos deixa anestesiados a ponto de agradecer a Deus e ao Estado por ser um Servidor público.

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  3. Puxa, valeu, Carmelinha! Mande o artigo, sim. Dentre as categorias-chave que estudamos na Geografia, o Lugar é o que mais me interessa - essa dimensão psicológica e social que se pode ter tratando dessa forman de espacialização é instigante. Pensar o trabalho proporciona, sem dúvida, um campo vasto de discussões - e o emprego público, como disse um sábio professor meu, é a estabilidade neste mundo atual tão inconstante e instável!

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    1. carmelinha kkkkkkkkkkkkkkk !! ninguém me chama assim desde da minha infância e olha que faz um bocado de tempo, héin! rsrs!!! Kelvin,kelvin vc é um ser humano muito encantador,pode crer!Ah!! amei o "carmelinha".

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  4. kelvin,tem uma leitura muito legal sobre trabalho: História e ética do trabalho no brasil.De Paulo Sérgio do Carmo.Ed. moderna.
    ver se vc encontra na biblioteca da universidade ou no sebo virtual,www.estantevirtual.com.br/

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    1. (risos acerca do "Carlmelinha"!) Vou procurar, sim. E estou dando uma olhadinha no artigo que você me passou - está en español, mas tudo bem, poetisa caliente, afinal, gosto de línguas!

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    2. kkkkkkkkkk,hum, muchacho, ai, ai... então não terás nenhuma dificuldade com a língua espanhola ela é muito próxima do português,claro que falada ela é muito mais sensual do que qualquer outro idioma, na minha opinião.O bom que vc pode ler na calma eu é q estou fu...lendo pra fazer prova.BUENA SUERTE muchacho!! gostas de poesia? adoro uma poetisa chilena Gabriela Mistral, confira!!

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    3. Uma boa poesia sempre cai bem. Valeu a indicação!

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