Os textos publicados neste blog são frutos de constatações banais que me surgem no dia-a-dia; insights acerca de fenômenos quotidianos, mas que repercutem em várias escalas e assumem uma dimensão mais complexa do que se imagina. A ideia aqui é compartilhá-las, desconstruí-las para um estudo crítico e moldar novas concepções pessoais. Afinal, é assim que se desenrola a dialética vida contemporânea.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sedução televisionada: Desligando-se ao ligar a TV


Constatei nos últimos meses algo que me era tão incômodo quanto imperceptível. Esse estranho paradoxo aguçou minha aflição quando, em uma tarde qualquer, uma amiga afirmara não assistir TV, isso porque a televisão lhe causava um efeito, digamos, sedutor. Pois bem, este foi o estopim para problematizar a questão. Logo me lembrei daquela canção do Pato Fu - Televisão de Cachorro:
Às vezes penso que eu assisto TV / como um cãozinho que olha o frango rodar
Que mais e mais saboroso de se ver / aguça cada vez mais meu paladar
Quando uma gotinha de óleo cai / como uma novidade que entra no ar
Eu paro tudo, eu paro de pensar / só pra ficar te olhando, televisão
(...) Mas meu cachorro nada vê na TV / e aí que eu vejo o burro que o bicho é
A tela plana não deixa ele perceber / a propaganda bacana de frango
(Televisão de cachorro, letra de John Ulhoa, música de Pato Fu, 1988)
Não falo de uma sedução de chamamento, de convite, mas sim de uma sedução de enleio, de fixação - por que não, prisão?! É o que bem retrata a letra da canção citada. Ocorre da seguinte forma: assisto algo que me interessa e que me motivou a ligar o televisor; durante os intervalos comerciais e após o programa, no entanto, continuo com o aparelho ligado, uma vez que vão aparecendo outras coisas que me fazem ficar ali, ainda que sejam falsamente interessantes. “Gotinhas de óleo” vão caindo e eu ali, hipnotizado feito um “cachorro olhando o frango rodar”, assistindo “novidades” que vão “entrando no ar”.
Jogue fora sua televisão / Tome esta clara decisão
[...] É uma repetição de uma história já contada
[...] Recrie sua supervisão agora / [...] Desligue sua ambição
[...] Reinvente sua intuição agora / [...] Alivie essa doença ruim agora
(Throw Away Your Television, escrita e composta por Red Hot Chili Peppers, 2002)
Bem, o aparelho está ligado, mas eu estou “desplugado”, ou quase isso. Isso porque esse processo incita uma vontade mórbida de permanecer ali, sentado, física e (aparentemente) mentalmente relaxado - e não o é porque sei que meu inconsciente está absorvendo dezenas ou centenas de ideias e processando boa parte delas, ditando meu comportamento cotidiano. É tão banal quanto perturbador saber disso, ainda mais quando tenho a certeza de que continuarei com esse hábito. A questão é tomar consciência de que não se trata de ser “cachorro”, mas sim, “burro”, como coloca John Ulhoa.
A televisão me deixou burro, muito burro demais
Agora todas as coisas que eu penso me parecem iguais
(...) Agora eu vivo dentro dessa jaula junto dos animais
(...) Ô, Crides, fala pra mãe /Que tudo o que a antena captar, meu coração captura
Vê se me entende pelo menos uma vez, criatura!
(Televisão, letra de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Belloto, música de  Titãs, 1985)

Bom, não quero adentrar outras questões para além do efeito hipnótico, de fascínio provocado pela TV - escopo deste texto. É certo que não se trata de um simples aparelho de mídia que transmite informações de e para o mundo todo, como cansamos de ouvir, mas sua essência, longe da dimensão material, está sob o comando de grupos corporativos que mantêm consigo interesses impostos a toda uma população. Desvencilhar-se dessa trágica habitualidade é a grande questão.

A minha TV ‘tá louca / Me mandou calar a boca e não tirar a bunda do sofá
Mas eu sou facinho de má-ré-de-si / E se a maré subir, eu vou me levantar
Não quero saber se é a cabo nem se minha assinatura vai mudar tudo o que aprendi
Triste o fim do seriado / Um bocado magoado, sem saber o que será de mim
(...) Num passado remoto, perdi meu controle
(Xanéu Nº 5, letra de Fernando Aniteli, música de O Teatro Mágico, 2008)
Dar-se conta de que ao chegar ao quarto ou a sala de estar, a primeira coisa que se faz é ligar a televisão. Dormir embalado pelo som da TV e tomar sua iluminação como abajur. Ir além: guiar-se pelos horários do dia através dos programas televisivos. Estudar, comer, conversar... Viver. A TV desligada reflete o que fazemos. A TV ligada dita o que fazemos. Sedução de convite ou de enleio, desprover-se desse mau costume é libertar-se de uma prisão psicológica.


10 boas canções estrangeiras atuais que não estouraram no Brasil
1 - Say Please (Monsters of Folk)
2 - Too Fake (Hockey)
3 - Hurricane Jane (The Black Kids)
4 - Two Weeks (Grizzly Bear)
5 - Rest My Chemistry (Interpol)
6 - Honey Honey (Feist)
7 - Something is Squeezing My Skull (Morryssey)
8 - Geraldine (Glasvegas)
9 - My Girls (Animal Collective)
10 - Don’t Carry it All (The Decemberists)

9 comentários:

  1. Caramba K! Eu demorei um pouquinho pra te fazer uma visita, me perdoe. Mas, uau! BEm que eu sabia que isso só poderia dar em coisa certa!
    Muito bom o texto! Adorei as indicações de musicas e textos que vc colocou. Vc está totalmente certo no que escreve. E isso é algo que sinto, também.
    Porém, eu decidi acabar com o hábito. E espero que vc consiga se desvencilhar também... gosto muito de um pensamento sartriano que afirma que a verdadeira liberdade está no agir, e não no pensar... Ou seja, não adianta de nada tomarmos consciência do que nos cerca, se não usamos esta consciência para agir.
    Continue escrevendo, continue!
    Abração forte!

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  2. Confesso que estou carente de leituras de Sartre, mas já deu pra perceber que ele influencia muito sua "filosofia de vida". Que bom que gostou das minhas indicações de música - estão entre minhas favoritas; e que bom que tenha gostado do texto. Se me permite revelar, a "amiga" citada é você! Realmente me impressiona seu desligamento da TV, mas como sei que não sou tão radical, procuro fazer uma triagem do que assisto (ainda estou aprendendo).
    Nem há o que perdoar, mas o que agradecer - "Aprofundamento" foi uma inspiração pra esse espaço.
    Abração forte, (^^)!

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  3. A discussão abordada é boa e dá um "pé de manga" gostoso além de nos possibilitar lançarmos variados olhares para tal questão,contudo,nenhuma proposição conclusiva ou objetiva para se chegar a um denominador comum, mas acho válido pensarmos o porquê das nossas atitudes e do outro.Eu não vejo absolutamente nada que me aliene mais do que já sou, mas confesso que algumas vezes ligo a TV para ouvir sons, vozes de seres humanos falando ou não bobagens, porque sinto falta de humanos por perto...mas não tão perto, entende? Sabe,Alfaia, creio eu, na minha superficial análise sociológica,pois essa questão midiática é/ foi muito debatida entre os grandes mestres da sociologia, antropologia enfim nas ciências humanas, que a grande "paradinha" está na solidão do ser humano, mas falo da solidão de alma, aquela que precisamos alimentar com atitudes positivas na vida (para não se sentir só) e somente assim contrair movimentos de vida que vão além do nosso cotidiano mecânico,acho que a televisão toma espaço na nossa vida quando nos alienamos das lutas dos nossos tempos, seja essa luta voltada para o meio ambiente,para garantia de direitos das minorias,por um projeto de vida que envolva mais do que o seu bem estar pessoal e que alcance amplitude, pessoas, animais, o planeta!!enfim...se perceber e interagir com todo seu ecossistema, o fazer a sua parte para a harmonia natural da vida.Um dia um amigo falou: vencer nem sempre é ganhar, às vezes ganhamos, mas isso não nos garante vencer.Bem é isso...eiii!! amei a dica de músicas.abs

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  4. Interessante sua perspectiva de análise, Carmélia: a tv como meio de manter-se falsamente acompanhada. Bom, também não gosto do silêncio, mas costumo usar a música pra me fazer companhia. Concordo com você, mas digo que a tv é um dos principais, se não o principal, instrumento de morbidez da sociedade humana no último século - cai como uma luva pra manutenção do status quo, pois nos distrai (daí: entretenimento), tirando-nos de foco de questões maiores.
    Quanto às canções, pretendo deixar sempre algumas indicações ao fim de cada texto - são interessantes, viu?!
    Abraços.

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    1. quanto às canções:sim!!! escutei algumas e agora estou escutando "Don't carry it all"..linda!

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  5. Concordo com vc Kelvin. E sei também que faço parte de população zumbi a construção mental traçada pela TV, (haja vista, que a TV não é só mídia) é tão comprometida que mesmo eu tendo consciência, ainda assim uso os seus recursos pra disfarçar a minha própria alienação diante da vida.A TV como veículo de comunicação de massa é indiscutívelmente um instrumento de alienação, mas ela tem um poder muito maior de simples alienar o ser humano,ela tem o poder do fascínio mesmo quando você a critica e compreende o seu papel na mão das classes dominantes.

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  6. Muito bem... Fascínio → "Hipnose" → Morbidez → Alienação...

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  7. é isso aí... só que não é linear.kkk

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  8. Eita!! quanto tempo passou...acho que já até mudei meu pensamento kkk sobre o assunto acima e sobre tudo..2012!! meu deus! como já mudei, como você já mudou, como todos nós já mudamos.

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