Os textos publicados neste blog são frutos de constatações banais que me surgem no dia-a-dia; insights acerca de fenômenos quotidianos, mas que repercutem em várias escalas e assumem uma dimensão mais complexa do que se imagina. A ideia aqui é compartilhá-las, desconstruí-las para um estudo crítico e moldar novas concepções pessoais. Afinal, é assim que se desenrola a dialética vida contemporânea.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

O automóvel: uma questão de existência


Alguém dirá que o automóvel serve primariamente para a locomoção do indivíduo no espaço, a fim de gastar menos tempo e/ou menos energia. Engana-se quem diz que este é o papel único do carro. Seu uso está para muito além disso. O carro é um símbolo de ostentação (e) de poder.
O automóvel enquanto símbolo de ostentação (e) de poder assume diferentes dimensões simbólicas, de acordo com algumas variáveis. Por exemplo: um executivo que ganhe muito bem e que viva em um bairro nobre se sentirá “confortavelmente poderoso” ao ter carros exclusivos, coleções de raridades, variados tipos de carros para vários usos e/ou ainda a troca de veículos a cada novo lançamento e nova moda lançada no mercado. Sentir-se-á “confortavelmente poderoso” um adolescente de classe média baixa, e que viva em um apartamento com sua família enquanto tal, com um carro popular usado qualquer - uma vez que poucos são os jovens não empregados que dispõem de um automóvel no Brasil -, por exemplo. E assim por diante... Logo, algumas das variáveis podem ser: condições financeiras, status social e local de vivência.
Outro efeito dessa carga simbólica do automóvel que constatamos no dia-dia é a possibilidade de velocidade, que consequentemente, muitas vezes, torna-se uma necessidade, espécie de condição existencial do carro. Considerando a simbologia que o automóvel carrega e a possibilidade-necessidade de velocidade, esse tipo de veículo ganha preeminência frente a outros “menores”, e incluo aí também o pedestre. Bem, presencio diariamente o esforço do pedestre em fazer-se ser visto para atravessar, muitas vezes correndo, uma faixa destinada ao cruzamento na via; correndo porque precisa dar passagem ao carro e conceder-lhe a possibilidade-necessidade de viajar em alta velocidade. Atravessar uma rua fora da faixa, então, nem pensar! Muito menos na faixa, enquanto o sinal está aberto para os automóveis. No máximo, o pedestre tem dez segundos pra atravessar a Avenida FAB, no centro de Macapá!
Isso me faz pensar inclusive na ausência de ciclovias em Macapá. Aliás, um problema nacional. Quer dizer, as vias para circulação de automóveis existem (ainda que consideravelmente esburacadas), mas na capital do Amapá simplesmente não há espaços destinados ao fluxo exclusivo de bicicletas, que por sinal, são muito comuns nesta região - não por assumirem um caráter de educação ambiental ou de saúde, mas sim de uma dimensão cultural, diria. Sendo de dimensão cultural, me parece mais clara a negligência por parte do Estado, levando em consideração a população (e seu status social) que faz uso desse meio de transporte.
Enfim, os efeitos que repercutem do símbolo-matéria automóvel são vários e os constatamos quotidianamente.
Pois bem, uma das ferramentas de fomentação dessa carga simbólica que o automóvel carrega são as propagandas (que não são poucas). Estive prestando atenção a algumas delas veiculadas na TV aberta e me deparei com uma que vem sendo exibida nos últimos meses e que é uma das piores que já vi!
1 - O indivíduo se dá conta que está “desaparecendo”; 2 - Mostra-se cada vez mais perplexo e preocupado com o “fato”; 3 - Decide então correr para uma loja de automóveis e adentra um belíssimo modelo recém-lançado; 4 - Então “visível”, em posse do carro, chama a atenção por onde passa; 5 - Mas a atenção que o indivíduo em seu carro chama tem por plateia principal as mulheres, afinal, o automóvel é um “indicativo de virilidade”.
Pra completar a trágica veiculação de ideia de poder que o carro pode lhe conceder, a propaganda diz: “Mas um que tem um carro que não diz nada!”. “Moderno, elegante, tecnológico e ousado, como você sempre quis!” - ora, você pode obter todos esses atributos assim que adquire um automóvel deste porte, além de tornar-se visível, possuindo um carro que diz tudo!
Cabe então a pergunta: seria o automóvel uma questão de existência no sentido de deslocamento, fluxo, portanto, de seu uso imediato, primeiro e original, ou ainda enquanto ferramenta de otimização do espaço-tempo de caráter capitalista; ou uma existência espiritual-material do indivíduo, que necessita fazer-se ver-se e “externalizar” suas condições financeiras e status social por meio de um veículo, destarte um símbolo, garantindo-lhe certa medida de poder? Hoje em dia, um sedan luxuoso já não me soa tão atraente como antes, mas perante a sociedade em geral, como soaria um desses?!

Tomando outro foco…
Interessante como funcionam as propagandas de automóveis. Se pararmos pra pensar, os comerciais de carros populares, na maioria das vezes, têm por enredo estórias cômicas, muitos deles ligados ao futebol (no Brasil) e quase todos destinados ao público masculino. Por exemplo: o grupo de jovens que pede informação ao vendedor ambulante de qual caminho tomar para chegar a Europa, a fim de assistir a Copa do Mundo de Futebol, mas os torcedores estão diante do oceano Atlântico! Ou ainda o amigo que confessa ao outro ser argentino, mas não surpreende o brasileiro, que só se espanta com a versatilidade do carro que possui - detalhe: trata-se de transporte do material da churrascada com os amigos!
Por outro lado, os comerciais de promoção de carros mais caros (acima de R$ 70.000,00) geralmente são os mais “sem graça”, isso porque o público ao qual estão vinculados dispensa a representação de hábitos comuns a camadas populares, restringindo-se à enunciação dos atributos tecnológicos (e implicitamente simbólicos), sempre passando a ideia de luxo e status; boa parte dessas propagandas é protagonizada por executivos, trajados enquanto tais com seus ternos, ou ainda praticando esportes como tênis e golfe. Pareceria-nos estranho um alto executivo transitando com um Fusca ao lado de um comerciante com seu New Beetle?! A primeira percepção a ser formada poderia ser a de menos ostentação de poder por parte do alto executivo e ainda a certeza de não pertencimento do Beetle por parte do comerciante... Vai entender! Trata-se de ideias historicamente construídas.


3 dentre as melhores canções de temática romântica
1 - When a Man Loves a Woman (Percy Sledge)
2 - Whiter Shade of Pale (Procol Harum)
3 - Unchained Melody (The Righteous Brothers)

terça-feira, 15 de maio de 2012

Lugar: o espaço enquanto ponto de fuga à oficiosa realidade


Há algumas semanas estive em um curso oferecido pelo Governo do Estado cuja finalidade era a de incitar a sinergia do servidor público em suas atividades laborais, a partir do autoconhecimento e de um aprimoramento nas relações interpessoais no ambiente de trabalho. A oficina foi ministrada por uma excelente psicóloga, o que nos colocava - os servidores participantes - como espécie de “pacientes” (desconheço o termo correto). Enfim, o que realmente interessa é que me foram surgindo ideias e questionamentos enquanto o curso decorria.
Sim, eu estava lá como espectador-"pesquisador", atento para as reações dos colegas funcionários e para o domínio teórico-prático da facilitadora em questão, sem, contudo, deixar de participar das atividades desenvolvidas.
Em uma das atividades os participantes expunham suas “técnicas” usadas para descarregar o estresse acumulado no dia-a-dia. Um dentre eles me chamou a atenção, ao afirmar se dirigir com certa frequência a Praça do Forte, parar em determinado ponto da praça, levantar os braços e gritar, gritar bem alto, a ponto de parecer a outrem um louco! - como ele mesmo colocou.

Logo associei o fato a uma forma de espacialização que na Geografia é conhecida como lugar - relação com determinado espaço que pode ser de afeição, bem-estar, de boas sensações, ou de aversão, desconforto, de sensações desagradáveis - tudo a partir da experiência sensorial e da percepção do espaço -; configura-se como um espaço de experiências pessoais, receptáculo de lembranças. Para ilustrar bem, sempre que ouço Nando Reis, especialmente o álbum “Drês” (2009), eu recordo da área do Parque do Forte que está de frente para o rio Amazonas (imagino que constitua um [bom] lugar para boa parte da população macapaense!).
O coração é uma flor que brota num chão rochoso
(...) Você ama esta cidade / Ainda que isso não soe verdadeiro
Você esteve em todos os lugares / E todos os lugares estiveram em você
(Beautiful Day, letra de Bono, música de U2, 2000)
A questão é que ainda não me havia passado pela cabeça usar os lugares como pontos de fuga à realidade da cinza e movimentada urbe - este espaço de fluxos constantes e rápidos, de compromissos desgastantes e ofícios que tanto nos consomem de forma repetitiva. Não, não sou contrário à vida urbana, que fique claro, e nem teria o porquê. Por outro lado, em meio a este cenário em tons acinzentados, têm-se essas ilhas, manchas de retirada, espécie de saídas de emergência, marcando um contraste em relação às repetitivas atividades oficiosas que tanto caracterizam a vida no meio urbano.
Trata-se de espaços de “perda de tempo”. Por isso são tão postos em papéis secundários; por isso passamos pouquíssimo tempo neles. A vida de trabalho nos é exigida para então nos provermos do “luxo” do lazer. Estamos quase sempre assimilando informações, mas em meio à natureza podemos tanto não fazer nada quanto ter acesso às informações de forma descompromissada e, portanto livre, de forma prazerosa, portanto. Não quero dizer que na mancha urbana não se pode apropriar-se do espaço nesse sentido, o que me faria negligenciar teatros, cinemas, esquinas, bares, etc., mas em qual outro lugar - como uma praça ou uma praia - podemos dispor de uma vasta extensão que nos permita certo isolamento, o contato com o natural e, em vista disso um distanciamento do espaço no qual praticamos desgastadamente nossos fazeres diários?!
Rendendo-se à (inevitável?) condição de peça de manutenção do trágico status quo, o que nos resta é mudar a concepção de que trabalho não prazeroso é preeminente frente a qualquer forma de lazer, ao mesmo tempo em que isso nos condena a uma condição social, a uma condição de vida que pode tornar-se prejudicial à subsistência humana - é necessário fazer um balanço entre os pesos postos de forma sadia. Sim, é complexo pra caramba! Eis então a dura tarefa de avaliar até que ponto vale a pena o quanto temporalmente devemos/podemos recorrer aos lugares enquanto pontos de fuga, enquanto espaços de liberdade e de “perda de tempo”, fazendo destes, receptáculos de experiências sensoriais e pessoais, de lembranças, estas acionadas por um agradável odor qualquer ou ainda por uma boa música do Nando Reis!
Mas triste é quem diz que para um problema / só existe a solução da matemática
O que me faz feliz são coisas pequenas / Um lindo arco-íris riscando o fim de tarde
(Livre como um deus, letra de Nando Reis, música de Nando Reis e Os Infernais, 2009)

Tomando outro foco...
Fico me questionando até que ponto um curso de sinergia pode ter real eficácia, considerando as condições de trabalho de um órgão público executivo (o “primo pobre” do legislativo e judiciário). Quer dizer, de que adianta o servidor ser instigado a almejar tanto autoconhecimento e aprimorar suas relações com os colegas de trabalho, desenvolvendo a utópica “simpatia geral”, sentir-se bem após uma oficina como esta (a qual pude perceber que surtiu bons resultados nos servidores participantes), se ao chegar ao ambiente de trabalho - composto de variados tons de cinza - cumprindo inflexíveis cargas horárias, desvios de função, baixas remunerações, plantões não remunerados, não disponibilidade de instrumentos que viabilizem as tarefas, etc., etc., et caetera, o indivíduo se depara com a volta à desanimadora rotina!? Isso me soa uma sinergia um tanto quanto efêmera e um compromisso meramente oficial por parte do governo!
Não vejo que o trabalho passe pela necessidade de cumprir rigorosamente uma carga horária (quando não se é imprescindível cumpri-la, como no atendimento direto ao público), sendo que o prazo por si só pode estipular o trabalho. Assim como o ambiente acinzentado, na sutil variação de cores neutras e dispondo de objetos tão característicos desse lugar, incorre na “maquinização” do servidor - este que tem uma energia em um tempo contado para gastar, geralmente não expondo seus sentimentos (neutralidade), um rol determinado de práticas que podem ser exercidas aí, vestuário propício para tal (uniformes explícitos ou subentendidos), assim como uma aparência física dita “correta”... -. Algumas empresas já usam as mais variadas estratégias de incentivo ao trabalho “feliz”, dentre elas a flexibilização do horário de trabalho (a partir de determinação de prazos) e a remodelagem do espaço físico no qual se desempenham as atividades (quem sabe umas cadeiras estofadas ou ainda um sofá, boa acústica, iluminação natural, elementos/objetos naturais, etc.). Faz-se necessário repensar todos esses aspectos concernentes ao trabalho e, sobretudo, ao meio em que se realiza o mesmo. Afinal, o ambiente não determina o comportamento humano, mas pode influenciá-lo.

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Nota: a conceituação de lugar e cidade apresentados no texto constitui uma visão pessoal, desprovida de um rigor científico no que tange a elaboração de ambos os conceitos expressos pela linguagem científica própria da Geografia. Para tal sugiro, dentre outros geógrafos, o chinês Yi-Fu Tuan e o brasileiro Milton Santos; lembrando que dentro da própria ciência geográfica, o conceito tem diferentes acepções, de acordo com as correntes que as definem.

5 boas canções psicodélicas de variadas origens
Estrangeira e estadunidense: 1 - Rock Lobster (The B-52’s)
Estrangeira e estadunidense: 2 - Brothersport (Animal Collective)
Estrangeira e islandesa: 3 - Innocence (Björk)
Nacional e paulista: 4 - Dois Mil e Um (Os Mutantes)
Regional e amapaense: 5 - Soldado Colorido (Mini Box Lunar)