Constatei nos últimos meses
algo que me era tão incômodo quanto imperceptível. Esse estranho paradoxo
aguçou minha aflição quando, em uma tarde qualquer, uma amiga afirmara não
assistir TV, isso porque a televisão lhe causava um efeito, digamos, sedutor. Pois bem, este foi o estopim
para problematizar a questão. Logo me lembrei daquela canção do Pato Fu - Televisão de Cachorro:
Às
vezes penso que eu assisto TV / como
um cãozinho que olha o frango rodar
Que
mais e mais saboroso de se ver / aguça
cada vez mais meu paladar
Quando
uma gotinha de óleo cai / como
uma novidade que entra no ar
Eu
paro tudo, eu paro de pensar / só
pra ficar te olhando, televisão
(...)
Mas meu cachorro nada vê na TV / e
aí que eu vejo o burro que o bicho é
A
tela plana não deixa ele perceber / a
propaganda bacana de frango
(Televisão de cachorro, letra de John
Ulhoa, música de Pato Fu, 1988)
Não falo de uma sedução
de chamamento, de convite, mas sim de uma sedução de enleio, de fixação - por
que não, prisão?! É o que bem
retrata a letra da canção citada. Ocorre da seguinte forma: assisto algo que me
interessa e que me motivou a ligar o televisor; durante os intervalos
comerciais e após o programa, no entanto, continuo com o aparelho ligado, uma
vez que vão aparecendo outras coisas que me fazem ficar ali, ainda que sejam
falsamente interessantes. “Gotinhas de óleo” vão caindo e eu ali, hipnotizado
feito um “cachorro olhando o frango rodar”, assistindo “novidades” que vão “entrando
no ar”.
Jogue
fora sua televisão / Tome esta clara decisão
[...]
É uma repetição de uma história já contada
[...]
Recrie sua supervisão agora / [...]
Desligue sua ambição
[...]
Reinvente sua intuição agora / [...]
Alivie essa doença ruim agora
(Throw
Away Your Television, escrita e composta por Red Hot Chili Peppers, 2002)
Bem, o aparelho está
ligado, mas eu estou “desplugado”,
ou quase isso. Isso porque esse processo incita uma vontade mórbida de
permanecer ali, sentado, física e (aparentemente) mentalmente relaxado - e não
o é porque sei que meu inconsciente está absorvendo dezenas ou centenas de
ideias e processando boa parte delas, ditando meu comportamento cotidiano. É
tão banal quanto perturbador saber disso, ainda mais quando tenho a certeza de
que continuarei com esse hábito. A questão é tomar consciência de que não se
trata de ser “cachorro”, mas sim, “burro”, como coloca John Ulhoa.
A
televisão me deixou burro, muito burro
demais
Agora
todas as coisas que eu penso me parecem iguais
(...)
Agora eu vivo dentro dessa jaula
junto dos animais
(...)
Ô, Crides, fala pra mãe /Que
tudo o que a antena captar, meu coração
captura
Vê
se me entende pelo menos uma vez, criatura!
(Televisão, letra de Arnaldo Antunes,
Marcelo Fromer e Tony Belloto, música de Titãs, 1985)
Bom, não quero adentrar outras
questões para além do efeito hipnótico, de fascínio provocado pela TV - escopo deste texto. É certo
que não se trata de um simples aparelho de mídia que transmite informações de e para o mundo todo,
como cansamos de ouvir, mas sua essência, longe da dimensão material, está sob
o comando de grupos corporativos que mantêm consigo interesses impostos a toda uma
população. Desvencilhar-se dessa trágica habitualidade é a grande questão.
A
minha TV ‘tá louca / Me mandou calar a boca e não tirar a
bunda do sofá
Mas
eu sou facinho de má-ré-de-si / E
se a maré subir, eu vou me levantar
Não
quero saber se é a cabo nem se minha assinatura vai
mudar tudo o que aprendi
Triste
o fim do seriado / Um
bocado magoado, sem saber o que será de mim
(...)
Num passado remoto, perdi meu controle
(Xanéu Nº 5, letra de Fernando
Aniteli, música de O Teatro Mágico, 2008)
Dar-se conta de que ao chegar ao
quarto ou a sala de estar, a primeira coisa que se faz é ligar a televisão.
Dormir embalado pelo som da TV e tomar sua iluminação como abajur. Ir além:
guiar-se pelos horários do dia através dos programas televisivos. Estudar,
comer, conversar... Viver. A TV desligada reflete
o que fazemos. A TV ligada dita o que
fazemos. Sedução de convite ou de enleio, desprover-se desse mau costume é
libertar-se de uma prisão psicológica.
♪ 10 boas canções estrangeiras atuais que não estouraram no Brasil ♪
1 - Say Please (Monsters of Folk)
2 - Too Fake (Hockey)
3 - Hurricane Jane (The Black Kids)
4 - Two Weeks (Grizzly Bear)
5 - Rest My Chemistry (Interpol)
6 - Honey Honey (Feist)
7 - Something is Squeezing My Skull (Morryssey)
8 - Geraldine (Glasvegas)
9 - My Girls (Animal Collective)
10 - Don’t Carry it All (The Decemberists)